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A Educação Profissional e Tecnológica integra a educação nacional, embora em um sentido particular. Não constrói o conhecimento enquanto tal, uma vez que essa é a função das áreas de pesquisa, acadêmicas e empresariais, mas potencializa o desenvolvimento de competências. A Educação Profissional e Tecnológica forma profissionais com habilidades para utilizar os conhecimentos de forma inovadora ao aplicá-los e difundi-los no mundo do trabalho.
O comprometimento com a utilidade dos conhecimentos tem sido um dos seus principais questionamentos. O que é aplicável e útil em um determinado contexto pode dar lugar a novas demandas com surpreendente facilidade face às mudanças na gestão das organizações e nas formas de produção das empresas nas últimas décadas.
Por ser a Educação Profissional e Tecnológica uma experiência distinta e diferente do sistema educacional mais amplo, provoca sentimentos que vão do desconforto em debater o tema à busca de relações, continuidades e semelhanças que a associem a esse sistema. O fato é que está deixando de ter um lugar marginal no debate educacional, para incorporar-se a ele. Está deixando de ser uma educação pensada para uma sociedade fabril e, portanto, caracterizada como um bem cultural relativo a posições sociais menos privilegiadas, para ser considerada um bem econômico não só pelos indivíduos diretamente envolvidos, mas pela sociedade em geral. Por sua relação com o saber tecnológico, passou a ser tratada como um investimento econômico estratégico e não mais como um dos fatores determinantes das relações de produção.
Essa mudança de entendimento faz com que surjam preocupações quanto a seu planejamento, quantificação, conteúdos, avaliação de desempenho, impactos econômicos e contribuição social. Por outro lado, crescem as dificuldades para se definir qual desenvolvimento humano deve a Educação Profissional e Tecnológica propiciar.
É comum associar a Educação Profissional e Tecnológica a uma concepção depreciativa do ser humano, reduzido a uma racionalidade meramente instrumental, bem como se referir a ela por meio de termos novos na área educacional, como competências, habilidades e capacidade de transferência, substituindo os tradicionais conhecimentos e disciplinas.
Desloca-se assim de uma concepção de educação mais centrada na relação com a cultura cognitiva e com o ser humano para uma mais centrada na economia e no mundo do trabalho. A pergunta que se faz é se é possível uma concepção de Educação Profissional e Tecnológica que contemple uma relação mais aberta com a sociedade e o ser humano.
A Educação Profissional e Tecnológica guarda estreita relação com a sociedade e o conhecimento, na medida em que seus egressos utilizam de diversas formas, em suas práticas profissionais, os conhecimentos adquiridos. Para a sociedade, por outro lado, o interesse pela Educação Profissional e Tecnológica deve-se ao fato de oferecer uma forma de conhecimento que tem um valor de uso no mercado de trabalho.
À medida que a sociedade se torna mais complexa e mais integrada pelo avanço das novas tecnologias, o mercado de trabalho se torna cada vez mais diferenciado e mais sujeito a mudanças, e consequentemente mais se diversificam as expectativas sobre os profissionais que demanda.
Já não bastam os conhecimentos adquiridos na educação básica. É necessário contar com habilidades que permitam que esses conhecimentos se amoldem a circunstâncias não habituais. Mais do que o conhecimento em si, as habilidades comunicativas, a flexibilidade e o trabalho em equipe que tornam o conhecimento operacional são demandados.
Dessa forma, a Educação Profissional e Tecnológica é um tema que ganha cada vez maior visibilidade na mídia e nas discussões de educadores, políticos, empresários, economistas e outros tantos. Afirmações como “faltam técnicos para tal ou qual setor”, “o País precisa de profissionais qualificados para sustentar o desenvolvimento”, “o governo incentiva a criação de novas escolas técnicas” são comuns. Se atualmente esse tema gera manifestações de concordância, nem sempre foi assim.
A questão do ensino técnico e tecnológico foi um tema polêmico nas últimas quatro décadas do século passado. Durante o Regime Militar brasileiro, de 1964 a 1985, os governos implantaram políticas públicas de incentivo ao ensino profissionalizante, sobretudo no nível médio de escolaridade. Num contexto ideológico voltado ao crescimento econômico, a formação escolar foi direcionada para aumentar a produtividade da economia. Tal direcionamento conflitava com a cultura educacional da época predominantemente humanista das estruturas curriculares, pouco voltadas à formação técnica e científica e alheias às demandas do mercado de trabalho e à competitividade do setor produtivo.
Defensores dessas políticas públicas de incentivo ao ensino técnico e tecnológico enfatizavam o caráter supérfluo de uma educação voltada para a formação humanística, considerando que esta estaria contribuindo antes para ser um complemento ao lazer do que um instrumento de inserção no trabalho. Essa formulação integrava o cenário de uma ideologia tecnocrática dos governos militares, que relegavam ao segundo plano, quando não coibiam, discussões e atividades políticas. Aos que se opunham ao regime, as políticas de incentivo à formação profissionalizante eram associadas à possível despolitização da população via uma formação educacional encarada ideologicamente como a serviço do setor produtivo e do mercado. Em consequência, as propostas de incentivo ao ensino técnico e tecnológico foram duramente questionadas por anos, e a legislação pertinente foi sendo reformulada e mesmo revogada.
O novo ordenamento político a partir de 1985, a Constituição de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996, a crescente inserção do Brasil na economia mundial trouxeram, para além das críticas do período anterior, a discussão para apontar adequadas soluções ao interesse do País em formular uma política de desenvolvimento e inovação, recolocando no centro dos debates a questão da formação de profissionais para ingresso no mercado de trabalho e para darem sustentação ao desenvolvimento econômico e social demandado pela sociedade.
A LDB de 1996, diferentemente das anteriores, contempla a Educação Profissional e Tecnológica em um capítulo específico. De acordo com o artigo 39, “a Educação Profissional e Tecnológica, no cumprimento dos objetivos da Educação Nacional, integra-se aos diferentes níveis e modalidades de educação e às dimensões do trabalho, da ciência e da tecnologia”.
Em termos de políticas públicas, a exigência por maior qualificação profissional tem sido respondida de imediato com a implantação de cursos técnicos, tecnológicos e profissionalizantes, com a expansão, principalmente, da rede pública de ensino voltada à Educação Profissional e Tecnológica.
Essa expansão é sem dúvida da maior importância; entretanto, a questão que se coloca é mais complexa. A intensificação do tempo de trabalho e as novas tecnologias de comunicação e informação, que implicam novas formas de produção e de gestão de processos, serviços e pessoas, compõem um contexto com desafios e constantes mudanças para a formação de profissionais. Se o contexto é complexo, também as condições para que a Educação Profissional e Tecnológica se realize não estão claramente delineadas no sistema escolar.
Embora a Educação Profissional e Tecnológica seja vista por alguns como ocupada com os aspectos rotineiros do mercado de trabalho, ela está, na verdade, comprometida com quase todos os desafios importantes impostos pelas mudanças econômicas e sociais de nosso tempo: o impacto das novas tecnologias, os novos comportamentos, as mudanças no mercado ou nas condições ambientais, as alterações na gestão e na organização do processo produtivo. A Educação Profissional e Tecnológica terá de entender essas mudanças, suas consequências e demandas, para poder responder a elas. Por isso, é útil que reconheça tendências atuais ou futuras e como elas vão impactar a prática educacional. Seus desafios são, portanto, como contribuir com o educar para a tecnologia e a inovação, o educar para o desenvolvimento sustentável e o educar para o trabalho numa sociedade do conhecimento.
Não é uma tarefa fácil, uma vez que, a continuar no ritmo das últimas décadas, o futuro é incerto e ninguém pode saber o que será importante daqui a alguns anos. Refletir sobre educação profissional é, portanto, uma oportunidade para ampliar o debate sobre de qual educação o Brasil precisa para realizar o seu potencial de país emergente, uma vez que o nível educacional da população é uma questão prioritária e um fator determinante para a realização desse potencial imprescindível para o desenvolvimento social e econômico. A falta de profissionais qualificados para suprir a demanda da expansão da economia se faz sentir em diversos setores produtivos. As empresas buscam qualificar seus profissionais, preparando-os para um mundo cada vez mais competitivo, onde a educação, o treinamento e a inovação são fatores essenciais para o sucesso continuado de pessoas, organizações e países.
A presente coleção Fundamentos e Práticas em Educação Profissional e Tecnológica foi criada no intuito de contribuir com reflexões e experiências que possam subsidiar formuladores e executores de políticas públicas, gestores de projetos organizacionais e professores de Educação Profissional e Tecnológica. Para tanto, apresenta pesquisas e práticas sobre a Educação Profissional e Tecnológica desenvolvidas em diferentes instituições, e de modo especial — já que nasce no seu seio — no âmbito do Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza, autarquia do Governo do Estado de São Paulo criada em 1969, responsável pelo ensino técnico e tecnológico do estado, com uma rede de cerca de trezentas unidades de ensino, entre escolas técnicas e faculdades de tecnologia, presentes em 240 municípios.
Para além de seu âmbito de origem, a coleção propõe-se como um espaço para pesquisadores de todas as instituições interessados em revisitar as práticas institucionais e teorizá-las, assim como em analisar as variadas e às vezes contraditórias discussões acerca da Educação Profissional e Tecnológica, seja da perspectiva das políticas públicas, seja da perspectiva de seus principais atores: alunos, gestores, formadores e mercado de trabalho.
O cenário em que ocorrem essas reflexões é o da zona de intersecção entre o mercado de trabalho, a educação e a sociedade. O ponto de partida é a descrição e a análise dos fundamentos e das práticas decorrentes das políticas públicas, em especial após a Lei de Diretrizes e Bases de 1996, que incorporou a Educação Profissional e Tecnológica à suas diretrizes e trouxe para o debate educacional temas como competências, produtividade, autonomia, flexibilidade, inovação, redes de cooperação. Tem-se como pressuposto que os termos e expressões que subsidiam as discussões oscilam, muitas vezes acriticamente, entre a lógica do setor produtivo e as concepções educacionais e influem de modo geral sobre as políticas públicas para a educação profissional. Trazem-se para a discussão questões como o saber ensinar o saber fazer, que envolve diretamente professores, alunos, currículos, organização do sistema de Educação Profissional. Seu objetivo é contribuir para que se esboce uma concepção de Educação Profissional e Tecnológica que não seja apenas uma combinação da lógica do setor produtivo com práticas educativas, mas, sim, uma redefinição do seu propósito a partir da concepção de ser humano no contexto dos desafios da época atual, anos iniciais de um novo século.
Considerem-se todos convidados a colaborar neste caminho de reflexão, seja como leitores atentos, seja como autores ou coautores de nossos próximos volumes. As portas da coleção estão abertas.
Prof.ª Dr.ª Helena Gemignani Peterossi